sábado, 26 de janeiro de 2013

DRAMA - PARTE 33

O ASSASSINATO DO PRESIDENTE
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... E O VENTO LEVOU
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LINCOLN
Crítica de Malcon Bauer: O presidente americano Abraham Lincoln é um dos homens mais admirados da história dos EUA. Grande articulador político, governou durante a famosa Guerra da Secessão e lutou para aprovar a 13a emenda, que daria um fim à escravidão no país e um fim na própria guerra. Diversos filmes já mostraram esta história. Mas nunca com a força deste aqui.
A trama se passa nos últimos meses da guerra, e o presidente Lincoln corre contra o tempo para aprovar a tal emenda antes que a paz chegue por outros meios. É um dilema e tanto: acabar com uma guerra de anos imediatamente ou estendê-la um pouco mais para, através dela, colocar um fim na escravidão (que ele abomina).
Desde que o filme foi anunciado todos aguardavam ansiosos pela performance de Daniel Day-Lewis (Sangue Negro) no papel-título. E a espera valeu a pena. Day-Lewis está impressionante numa composição física perfeita, um homem digno que leva em suas costas os quatro anos de um conflito que parece ter-lhe exaurido pelo menos uma década. Um homem envolvido num perigoso dilema que mudará toda a história. Mais uma vez, o ator entrega um trabalho magnífico.
Existem também outros dois grandes destaques do elenco.
O primeiro é Tommy Lee Jones (Um Divã Para Dois), arrasador como o abolicionista Thadeus Setevens.
O segundo é Sally Field (Norma Rae). No papel de Molly, a esposa do presidente, ela entrega uma performance emocionante e amargurada, levando-nos para a intimidade do personagem principal. O contraste do homem público e íntimo gera lindos momentos. Pelo menos uma cena entre os dois me deixou arrepiado.
O núcleo familiar também serve para desconstruir ainda mais a mítica de "homem sem defeitos" de Lincoln, mostrando sua tortuosa relação com o filho mais velho (interpretado por Joseph Gordon-Levitt, de Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge).
O diretor Steven Spielberg mostra-se inesperadamente contido (principalmente após o aviltante e melodramático Cavalo de Guerra) na condução do espetáculo.
Algumas cenas alcançam extrema beleza plástica e até a trilha sonora do habitual colaborador John Williams está menos invasiva.  A cena do resultado da votação da emenda é um exemplo belíssimo disso, lembrando aquela velha máxima de que "menos é mais".
Claro que todo o blá-blá-blá político do primeiro terço do filme pode incomodar. Afinal, fala-se muito de personagens e situações que nós não conhecemos. Mas passado este momento, Lincoln se mostra um filme inteligente, sensível e delicadamente dirigido, capaz de emocionar e até gerar algum suspense (o que é um trunfo e tanto, já que todos sabem o resultado da votação da emenda).
É, sem dúvidas, um belo filme.

Crítica por Vicente Concílio: Steven Spielberg não é um novato em abordar a escravidão em seus filmes. As heranças de um passado escravocrata permeiam toda a narrativa de A Cor Púrpura (1985), por exemplo. E em Amistad (1997), retrata-se um caso verídico no qual a Suprema Corte  decide se um grupo de negros que aportaram na costa americana devem ser considerados cidadãos livres ou escravos fugitivos. Neste filme, há uma cena na qual Anthony Hopkins, interpretando o presidente John Adams, realiza um discurso eloquente e contaminado por referências a "valores humanos" e "liberdade", que caem no vazio pela beleza de sua retórica e pela inverossímil possibilidade de que tais palavras, e apenas elas, tocariam os corações do júri. O resultado é uma cena irritante e melosa na qual deve-se crer que, com a força da música incessante, os brios de escravocratas foram tocados e nascia ali a rota para a abolição.
Um abismo separa esse Spileberg do homem que dirigiu Lincoln. Abrindo mão de apelos fáceis à emoção e preocupado em destrinchar os meandros políticos de uma delicada mas crucial questão, o roteiro de Tony Kushner é uma obra poderosa, que se concentra na força das palavras e elabora recortes inteligentes, transitando entre universos íntimos e públicos e nos oferecendo uma visão ampla do contexto e das principais tensões que rodeavam o mundo do protagonista.
O homem público e homem de família estão devidamente retratados: Lincoln nos é mostrado como um estrategista audacioso e consciente das medidas arriscadas (e nem sempre heróicas) que tomava, ao mesmo tempo em que cuidava de seus filhos e lidava com um casamento de poucas alegrias.
Palavras não podem descrever o que é o trabalho de Daniel Day-Lewis nesse filme. É arrepiante na sua concisão, assombroso no magnetismo e nas possibilidades que ele constrói fisicamente e vocalmente, sem nunca deixar de surpreender. A maneira com que seu corpo vai exibindo o cansaço e a degradação de quem suporta os cadáveres da guerra nas costas é de uma beleza tocante.
Mas o filme é mais que seu protagonista. Tommy Lee Jones está soberbo, assim como David Strathairn. Joseph Gordon-Lewitt também tem espaço para oferecer um ótimo trabalho, assim como James Spader, John Hawkes e Hal Holbrook. E Sally Field simplesmente não desperdiça um só momento: em um trabalho comovente, ela transita entre a ironia, a amargura e a tristeza imensa de uma primeira-dama que reconhece com certa abnegação o papel que lhe coube na vida escolhida pelo marido. Sua cena com Tommy Lee Jones é um ponto alto, sem dúvida.
Em termos técnicos, entre tantos trabalhos de qualidade, destaca-se o impressionante apelo barroco da direção de fotografia, com sua luminosidade teatral e carregada de dramaticidade, como se cada cena fosse uma tela imaginada por um gênio como Caravaggio.  
São duas horas e meia de uma bem estruturada narrativa, com forte apoio no poder dos diálogos e uma solene direção de Spielberg. Isso é impressionante, pois o mesmo autor da famigerada cena de Amistad, citada acima, dessa vez faz um esforço louvável para tirar qualquer apelo heróico à figura do protagonista. Como se ele estivesse simplesmente cumprindo o seu papel, de acordo com valores inegavelmente corretos. Isso oferece ao Lincoln retratado uma outra aura, a de um homem justo, correto, de uma nobreza interna cheia de falhas, e por isso mesmo, tão palpável.
Também os clichês de um drama de tribunal são combatidos: a cena da votação da 13a emenda é mostrada e, quando o clímax acontece, não vem com ele a previsível música emocionante. O diretor propõe outra coisa. Por isso, é interessante que o filme seja atacado por não ser "empolgante". Ele empolga sim, mas no seu apelo racional, na envolvente trama política  que ele se propõe a retratar com maturidade, sem infantilizar o público com discursos apelativos e cenas inflamadas.
Não sejamos ingênuos: é um filme que mostra um homem que mereceu destaque na história americana. É um filme americano, mas não um filme americanóide.  O presidente não salva o mundo, muito pelo contrário: ele cria mais um problema, que é o destino dos antigos escravos. Essa sim  uma questão que não se resolve com uma emenda constitucional. 



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